Eh Madeiro – por António Cabanas

António Cabanas
Sociólogo
Meimo
a

A quadra natalícia está impregnada de simbologias, representando, desde logo, a ancestral comemoração do solstício de inverno, a que se foram associando, consecutivamente as dimensões religiosa, social, étnica, gastronómica, mas também económica e mercantil.
Esta diversidade de simbologias, desdobra-se numa panóplia de tradições como o presépio, o pai natal, a dádiva de presentes, a árvore de natal, a ceia de consoada, entre tantas outras. A fogueira do madeiro, enquanto tradição comunitária, é das que mais se destaca na adesão popular, no Portugal rural, sobretudo no interior norte e centro.
Como em outras tradições, há elementos imutáveis e ancestrais ou que perduram durante séculos e outros mais efémeros que se adaptam de forma mimética aos novos tempos. O elemento estruturante da tradição do madeiro é a fogueira, em si mesma, com paralelo nas fogueiras dos santos populares (solstício de verão) e tendo por base o culto do fogo. Esta antiquíssima veneração, traduzida na necessidade de manter em permanência uma pequena fogueira, devemos entendê-la na dificuldade que os nossos remotos antepassados tinham em ateá-la, sem os meios de ignição que temos hoje. Naquelas épocas, ter uma chama acesa de forma permanente, num local abrigado, a que se pudesse recorrer para atear a lareira, a forja ou para outra qualquer necessidade de fogo, era algo essencial numa sociedade organizada. Tanto romanos como gregos tinham essa prática, chegando ao ponto de venerarem os seus deuses do fogo e no caso dos romanos havia até sacerdotisas, as Vestais, que se dedicavam exclusivamente ao culto e guarda da pira sagrada. Laivos desta sacralidade, no caso da fogueira de natal, mantiveram-se quase até aos nossos dias, sem esquecer, naturalmente, a forte associação cristã ao Deus-Menino. O círio ou a lamparina de azeite que ficavam acesos dia e noite nas nossas igrejas e a que facilmente se recorria para acender a lareira são outras reminiscências adaptadas desses antigos cultos do fogo. Veiga de Oliveira, refere que em razão da sacralidade do fogo destinado ao culto, o gado usado para o transporte não poderia tocar na lenha do madeiro. Em Penamacor, ainda há poucos anos se levavam para casa pedaços de um tição queimado ou carvão que se guardavam para dar sorte. Havia até quem os apagasse em água benta e os colocasse depois junto da caixa/oratório da Sagrada Família.
Outro elemento importante da tradição do madeiro é o ritual de iniciação dos jovens, que, embora com algumas adaptações se vai mantendo nos seus fundamentos. No século passado eram os “rapazes do ano”, em altura de “ir à tropa”, que se mobilizavam de forma espontânea para cumprir as tarefas de arrancar e transportar os troncos para o largo da igreja, e eram também eles que ateavam a fogueira e a guardavam durante a noite. Hoje, também as raparigas se associam, fazendo jus à igualdade de género. Nas aldeias mais desertificadas e com poucos jovens, são as juntas de freguesia que os apoiam ou os substituem para que a tradição não se perca.
É frequente dizer-se que “a tradição já não é o que era” e critica-se a introdução de novos elementos e práticas, temendo que essas inovações acabem com a dita tradição. Ainda me lembro das críticas à introdução da motosserra e do trator para o corte e transporte dos troncos, que substituíram o enxadão e o carro de bois, respetivamente. Em geral são os mais velhos que comparam a adaptação de novas tecnologias com as práticas supostamente “mais genuínas” da sua época. Trata-se de um receio infundado, e de uma perceção errónea já que as tradições são por natureza evolutivas e as que não evoluem e se cristalizam no tempo, são, por sinal, as que mais riscos correm de desaparecer.
Nas suas manifestações mais genuínas, a tradição do madeiro divide-se em dois momentos distintos, o do seu arranque, associado à festa da Padroeira (8 de dezembro) e o da sua ignição na véspera de Natal. Os ritos iniciáticos mais exigentes têm lugar nos dias do corte e arranque dos cepos, com tarefas a exigir alguma valentia, feitas geralmente ao frio e à chuva, ou até durante a noite. É o momento da provação e do sacrifício, de vestir o fato macaco ou a roupa mais velha. Em muitas comunidades, alguns troncos ou todos serão roubados, comprovando a ousadia dos jovens. O dono espoliado dificilmente terá coragem para “a malta do ano” a qual terá sempre o apoio da comunidade. As próprias autoridades preferem não se intrometer nos desvarios ou exageros dos jovens, sabendo que qualquer interferência terá, de certeza, a reprovação veemente da maioria. A fogueira, por seu turno, é o momento da festa e de fruição, não apenas dos iniciados, que se mostram nesse dia com roupas novas e lavadas, mas de toda a população destinatária da tradição.

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