Entrevista com o Coronel Duran Clemente

Atualmente Coronel reformado, com 81 anos de idade, filho de um sargento militar do exército, natural da Capinha. Viveu a sua infância em Penamacor, por via de o seu Pai estar colocado neste quartel. Por isso, nutre por estas terras especial carinho e afeto, assumindo-se como Beirão- Galaico.
Manuel Duran Clemente foi um dos cerca de 200 capitães que há 50 anos na madrugada de 25 de Abril de 1974, vieram a protagonizar uma das mais bonitas transformações da história de Portugal. Há cerca de 25 anos cruzámo-nos na Margem Sul para entrevista noutros jornais que dirigi, a sua carateristica intelectual e clareza de discurso eram e são peculiares. Por indicação do Presidente da Junta, convidei-o para vir a Caria nas comemorações dos 50 Anos de Abril e Centenário da Vila.
É a entrevista que se impunha nesta Edição que também ficará para a história, saída nos 50 anos do 25 de Abril de 1974.

Jorge Henriques Santos

Correio de Caria: Uma das suas tónicas nas entrevistas que tem dado e nas declarações que tem proferido, é de que não é um herói, os capitães de Abril não são heróis, pois a heroicidade foi do Povo que nessa manhã saiu à rua e não permitiu que o movimento jamais parasse. Isso é um facto, mas o senhor com a sua natureza insubmissa acabou por ser uma peça chave no processo que levou à viragem do País.
Num exercício de memória de onde vem essa sua natureza de não resignação e que episódios regista que o revelem na sua infância e juventude?

Manuel Duran Clemente : Foi talvez a minha curiosidade cultural desde pequeno. Desde Penamacor (onde vivi até aos 11 anos) querendo perceber porque os jovens perseguidos políticos eram considerados delinquentes, como se fossem adolescentes “carteiristas” ou autores de outros pecados sociais, e tivessem eles – lúcidos jovens políticos – de estar aquartelados no mesmo quartel (muito longe de suas terras) junto dos outros (precarizados pelo sistema)… Quartel (1ª Companhia Disciplinar) onde o meu pai sargento (beirão da Capinha) foi colocado. Nestes contactos com todos os precarizados e os militares – anti salazaristas – comecei muito cedo a ser revoltado. Eu um menino bonitinho a perceber que o calor do madeiro da vila podia ser luz para o futuro. E foi. Essa revolta desenvolveu-se na minha vivência futura com uma formação familiar progressista e circunstâncias futuras que me permitiram ter sido um estudante universitário da vida com as diversas universidades rurais e urbanas, muito ligadas à terra, à natureza e à “pólis” (cidade).

C.C. – Ser capitão do exército em 1973 e “apanhado”, no Congresso da Oposição Democrática com uma resma de comunicados no carro, a conspirar contra o regime. Revela algum arrojo? Quer recordar o episódio?
MDC:
O nosso maior arrojo é procurar desde cedo “o saber e o conhecimento” e, simultaneamente, não desprezar as nossas origens, mas integrá-las com humildade, certos de que nascemos “como um pequeno ovo” e vamos desaparecer como pó! O meu documento era uma reivindicação legal mas tornada como subversiva pela ditadura. Como era quase tudo. Éramos “isqueiros” a precisar de licença ou do seu indeferimento porque o fogo origina luz que os ditadores não estimam. Foi o que aconteceu

C.C,:– Mas depois com o castigo converteu o constrangimento em oportunidade, vai desterrado para a Guiné e acaba por organizar aí um dos primeiros grupos de capitães revoltosos. Como foi?
MDC: Não gosto do termo “onde acaba por organizar”. Sim, cheguei depois do fim de Julho e encontrei outros capitães do meu tempo e que também estavam na mesma “onda”. Tínhamos já grande afinidade cultural progressista desde a Academia Militar. Eu vinha desses tempos de 1961 com uma certa notoriedade de inquietos revoltados e de insubmissos como eles. Trazia na mala documentos e conclusões de Aveiro, desse Abril de 1973. Isso integrou-me no grupo dos que já contestavam, na Guiné. E fui eleito para a primeira comissão rumo ao nosso Abril de 1974, nove meses depois.

C.C.: – Às vezes tem-se a ideia (sobretudo os mais jovens) que este Movimento de revoltosos se meteu numa “conspiraçãosinha” que acabou por dar certo e mudou o regime. Mas houve um trabalho longo e de grande secretismo em vários locais e com vários núcleos. Quer dar uma ideia?
MDC:
“Conspiraçãosinha ou não” resultou num dos mais importantes eventos da História de Portugal. Há quem diga um dos quatro. Qual pequena conspiração? Os grupos de militares (mais jovens) há muito se interrogavam sobre as teimosias da ditadura. Sobre as contradições da pobreza e da guerra, da repressão e censura, da desigualdade, da exploração e falta de liberdade e de permanente obscurantismo. Sim, houve um trabalho longo e aprendemos com as lutas antifascistas, anticolonialistas e a dos movimentos de libertação.

C.C.: – Nesse envolvimento com esses militares todos onde uns seriam mais descontentes e outros mais resignados, havia um sentimento de unidade na ação. Todos estavam para o mesmo? Todos sabiam o que queriam?
MDC: Conseguimos agregar as diferentes tendências para fazer Abril. Todos estavam dispostos a “acabar com guerra”. Mas, é verdade, que nem todos aceitavam o nosso Plano Político. Nem todos terão entendido o que era esse programa: Democratizar, Desenvolver e Descolonizar. Cada um saberia o que queria, mas infelizmente nem todos saberiam o que era preciso mudar.

C.C.:– Mesmo pretendendo o fim do regime, não era claro o regime que se queria implantar. Mas havia já pontos consensuais? Liberdade política para todos os partidos? Eleições livres? Uma constituição? Poder autárquico etc?
MDC:
Não havia qualquer dúvida que se queria um regime democrático. Isso é o primeiro “D” do nosso programa. Só que quem perdeu privilégios, os inimigos de Abril: muitos ignorantes, saudosistas, rancorosos, caciques locais e até algum clero atrasado, não se inibiram de nos caluniar.

C.C.:– Depois com o PREC – Periodo Revolucionário Em Curso, veio a discussão, o debate, o confronto na rua e havia quem falasse na ameaça de uma guerra civil. É uma história que ainda está mal contada, mas chegou a haver armas distribuídas na população. Que opinião faz desse período?
MDC: Qual guerra civil? Uma falácia. Com as armas de quem? Para mim, isso foi sempre uma habilidade, como outras, para manipular e assustar o povo. Não podemos confundir eventuais (repito eventuais) anseios de alguns intérpretes (mais radicais) defensores da Revolução e das conquistas de Abril, legitimamente desgostosos com os acontecimentos, com os outros, enganados (como hoje) pela manipulação de saudosistas. A proclamada distribuição de armas foi mais um truque de quem desejou interromper o processo democrático do MFA simulando o contrário, ou seja, fazendo crer que o defendia . Os 50 anos passados esclareceram isso.

C.C.:- E de repente veio o 25 de novembro, como se numa manhã de nevoeiro saísse um general de Alcains para por ordem na contenda… Na ocasião o senhor não se mostrou muito resignado. Agora 49 anos depois, faz a mesma leitura desse desfecho?
MDC: Ordem na contenda que não era favorável aos saudosistas do fascismo? Nem o jovem caricato D.Sebastião apareceu, no nevoeiro, nem o Frank Carlucci (embaixador USA) percebeu que certas regiões portuguesas precisavam de outras nuvens e de outras ondas. Nunca estarei resignado, nem mesmo hoje,

C.C.: – Quando falamos na parte de Abril que ainda está por cumprir é por causa disso?
MDC: Apesar de tudo muito se conseguiu e o nosso Portugal contemporâneo nada tem a ver com o do passado. Esse Novembro/75 tem muita responsabilidade no retrocesso. O nosso estimado beirão, Professor catedrático Dr. Avelãs Nunes, explica isso com profundidade no seu livro “O NOVEMBRO QUE ABRIL NÃO MERECIA”. Temos de lutar todos os dias para ser obreiros do que falta fazer.

C.C.: – Ao olhar o 25 de Abril, podemos sempre ver o copo meio cheio ou o copo meio vazio. Como obreiro direto do golpe militar e até porta-voz no período que veio a seguir. Como considera o senhor, 50 anos depois: Meio Cheio? ou Meio Vazio?
MDC: Não gosto nem de meio cheio, nem de meio vazio. Mas já devem ter percebido que sou de preferir o copo a encher. Convido-vos a contribuir para isso. Mas bebam à vontade o que vos aprouver desde que a garrafa seja do tamanho do mundo para nos ir saciando e enchendo a taça de Liberdade, Igualdade e Solidariedade.

C.C.: – O Movimento que levou ao 25 de Abril envolveu mais de 200 oficiais e segundo o senhor também refere, a maioria deles foram ignorados. O que se devia fazer para render a justa homenagem a todos esses homens?
MDC: Procurar divulgar mais a verdade e não difundir alguns mitos ou promover homenagens a cidadãos (militares e civis) sedentos de protagonismo e de palco. Há alguns. E beirões. Creio que já todos se consideram homenageados. A grande condecoração foi, e é, a do Povo Libertado.

C.C.: – E no Povo, considera que esta apoteose de múltiplas celebrações, nos 50 anos, são a prova que o 25 de Abril está Vivo?!
Que Apelo e Mensagem?!

MDC: Para mim continua vivo. Mas temos de ter grandes couraças para evitar a sua morte. E vamos mantê-las.
…..
Apelo : “O caminho faz-se caminhando”, nas veredas (estradas ou vias) passando as curvas apertadas, as lombas e descidas , no e num autêntico saber e conhecimento das contradições da vida e da astúcia dos inimigos da comunidade e da sociedade que merecemos.
Merecemos ser mais felizes.
A nossa Beira sempre foi uma terra de labor, esperança e amor. Tenho muito orgulho em ser um beirão-galaico.

Saudações de e por Abril.

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