A “Encomendação das Almas”

Paulo Silveira
Três Pvos

Na Beira Baixa, a encomendação das almas, é uma tradição popular de cariz religioso, que ainda subsiste em algumas das nossas aldeias e vilas.

Em 1926 escrevia Jaime Lopes Dias no Volume I da “Etnografia da Beira” que “em muitas localidades da Beira Baixa costumam, algumas mulheres em determinadas noites da Quaresma, subir ao campanário da Igreja ou aos sítios mais elevados das povoações, a encomendarem as almas ou entoarem em toada muito triste versos”:

As almas do purgatório
Já gritam em altas vozes
Co ‘as mãos postas ao céu:
Irmãos, lembrai-vos de nós
.

A preocupação com o destino das almas que sofrem no purgatório é antiga e o ritual de sair para a rua de noite, a lembrar que se reze por elas, remonta a séculos passados.
Nos meios rurais, ainda, estão muito arreigados a alguns conceitos de religiosidade como o céu, o purgatório e o inferno. O ritual da encomendação das almas é uma prática de culto que tem por finalidade interceder pelas almas dos antepassados, que, porventura, estejam a sofrer as penas do purgatório, pois seria temporária lá a permanência, como uma passagem expiatória e purificadora para uma subida final ao céu.

Ainda, durante a Quaresma, grupos só de mulheres ou mistos, vestidos de negro, saem de casa a altas horas da noite e vão pelas ruas, parando em vários pontos da aldeia, para rezar em conjunto, pelas almas dos mortos, lembrando que esta vida terrena tem fim.
Pede-se a salvação das almas do purgatório, para que passem à Glória. O tom dos cânticos é triste e, por vezes, bastante soturno como referiu o etnomusicólogo José Alberto Sardinha, “são vozes fortes que no silêncio da noite se ouvem distintamente, com efeito espetacular e psicológico, que se enquadram no contexto dos ritos funerários”. As letras das quadras que entoam têm como objetivo apelar aos que dormem para que acordem, acendam uma vela e rezem pelas almas do outro mundo.

Ó almas, que estais dormindo
Nesse sono em que estais
Acordai-vos e rezai
P´almas do outro mundo”.

Ó almas que estais dormindo
Nesse sono em que estais
Eu vos peço que rezeis
Pelas almas dos vossos pais

Estes cânticos remetem para a meditação e para recordação dos familiares falecidos…invocam os mortos, cantando a encomendação das almas, o que é uma forma de pedir a sua intercessão junto das forças propiciatórias da boa ventura.
O etnólogo Jorge Dias escreveu “(…) “A encomendação das almas é uma prática piedosa que, embora conserve muitos restos pagãos, se pode considerar inteiramente cristã na essência. O que se procura é infundir piedade aos vivos pela alma dos mortos, a fim de que estes se juntem em preces fervorosas, de maneira a alcançarem o perdão de Deus para os pecados dos parentes”.

Esta tradição, de raiz cristã, está incluída nas manifestações de religiosidade popular, porque é uma prática ritualizada por populares, com alguns traços pagãos, à margem do culto oficial

É de facto impressionante ouvir estes cânticos dolentes e arrepiantes, procedentes de crenças e rituais antigos, sendo uma súplica pela salvação dos “fiéis defuntos” com as vozes sinistras e lúgubres. Um ritual ancestral que, ainda, se pratica na Quaresma em algumas das nossas aldeias. Um património cultural imaterial a salvaguardar.

Votos de uma Feliz Páscoa aos leitores do “Correio de Caria”

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