Entrevista ao escritor João Morgado

“Há ainda muitos livros em branco para escrever, na literatura, na vida e na política…”

Natural de Aldeia do Carvalho, Covilhã, João Morgado, jornalista e escritor, foi distinguido em novembro passado com o prémio Ferreira de Castro, instituído pela Câmara Municipal de Sintra. O júri, decidiu por unanimidade a atribuição do prémio ao escritor Covilhanense que concorreu com o Romance “Livrai-me do Mal”, sob pseudónimo. Ao todo são já oito prémios literários, um deles no Brasil.
É, de longe, o escritor mais consagrado da região, o que justifica a primeira entrevista do Correio de Caria, na sua missão de noticiar e promover os valores coletivos e individuais desta região. Neste caso a um escritor com um interessante percurso de vida, dado que já foi operário têxtil, comercial, jornalista, que hoje tira o doutoramento na Universidade da Beira Interior e é Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara de Belmonte.

Jorge Henriques Santos

Correio de Caria – Queríamos fazer três abordagens nesta entrevista: Ao João Morgado cidadão natural e residente na Beira Interior, ao João Morgado jornalista e escritor e o João Morgado e a cidadania política.
JM
– As origens numa família humilde da Aldeia do Carvalho. O meu pai era mestre de cardação na Lanofabril, a minha mãe, na minha infância, era costureira, costurava em casa. Fui criado com ela…

CC – E foi nesse ambiente que se despertou para a escrita?
JM-
Era uma casa onde se conversava muito ao serão. Meu pai era um excelente contador de histórias, o que me despertava a imaginação. Não havia televisão, mas tinha a rádio, onde ouvia teatro e romances radiofónicos. Foi o meu primeiro contacto com os clássicos. Não era uma casa com livros, mas havia a Biblioteca Itinerante, a famosa carrinha Fundação Calouste Gulbenkian, que ia ao arraial da Aldeia de Carvalho duas vezes por mês. Eu lia muito desde miúdo, quando entrei para a primária já sabia ler e escrever, a minha mãe ensinou a ler e a escrever muito cedo…

CC – Isso facilitou?!
JM – (Risos)…depende, facilitou nos primeiros tempos mas como não tinha a mesma necessidade de me aplicar os primeiros tempos de escola, também não ganhei disciplina para estudar e quando as coisas apertaram no liceu… foi difícil.

CC – Então a carrinha culminava a paixão da leitura?
JM
– Sim. Teve uma enorme influência em mim. A partir de certa altura, o senhor já me emprestava o dobro dos livros. Percebeu que eu lia e relia aquilo tudo num instante, não sei como fazia, mas deixava-me levar seis livros. Vendo a minha apetência pela leitura, depois meus pais também já compravam livros para eu ler. Iam à Livraria Nacional, na Rua Direita, perguntavam por livros para a minha idade, mas o senhor vendia-lhes os clássicos… por isso comecei a ler muito cedo o Júlio Dinis, o Camilo, o Torga…

CC – E daí é que veio o gosto pela escrita?
JM
– Uma coisa levou à outra. Comecei muito cedo a escrever, criava contos e coisas assim…Já no secundário, pedi aos meus pais para estudar de noite, pois ia escrever um livro durante o dia…

CC – E eles?
JM
– Concordaram. Fizeram-me a vontade. Davam-me sempre apoio. Acontece que estava nos meus 17 anos, a descobrir a vida, e é claro que passou o ano e eu nem estudei nem escrevi coisa nenhuma. No final do ano, meu pai disse-me apenas: Bem, continuas a estudar à noite, mas vais trabalhar…

CC – E é quando foi para a fábrica?
JM –
Sim. Fui para os Lanifícios Cantargalo, mesmo ao lado de casa. Com 18 anos já era encarregado da cardação do Fernando Antunes, devia ser o encarregado mais novo nessa altura…

CC – E sempre a estudar à noite?
JM
– Sim, sempre como trabalhador estudante. Passei por várias empresas, estive no departamento comercial de umas confeções de Belmonte, fui comercial no Paulo de Oliveira, depois de uma empresa espanhola que era cliente Paulo de Oliveira. Só bem mais tarde, já com 25 anos resolvi ir para a Universidade.

CC – Onde estudou?
JM
– Aqui na Covilhã, na UBI. Entrei em Gestão e depois passei para o Curso de Comunicação Social, pois na altura já colaborava com o Notícias da Covilhã e era muito activo na Rádio Clube da Covilhã

CC – Depois é que seguiu jornalismo?
JM –
Fui estagiar e trabalhar no diário Público, em Lisboa.

CC – Foi nessa altura que passou também pela JOC (Juventude Operária Católica)?
JM
– Não. Na JOC andei muito antes, entre os 16 e os vinte e tal anos… Integrei aqui a equipa da JOC, que na altura, estava num certo conflito com a Igreja Católica, mas que depois se superou com a ajuda do Pe. Fernando de Brito e a benevolência do Bispo D. António dos Santos que era conhecedor da origem do movimento. Foi uma experiência para mim muito importante e cheguei a ser Dirigente Nacional do movimento. As minhas primeiras viagens ao estrangeiro foram para participar em encontros da JOC Internacional…

CC – Foi uma outra escola de vida!?
JM
– Sim, e que tenho para mim como essencial. Despertou-me para certos valores da vida, para a solidariedade social, para o sentido critico do que nos rodeia e, sobretudo, como levar as pessoas a fazerem algo para mudarem as coisas. “Ver, Julgar e Agir”, era o método de reflexão de vida. Foi para mim uma escola muito importante.

CC – Entretanto depois voltou cá, para a terra?!
JM
– Estive como correspondente do Público e trabalhei na RCB – Rádio Cova da Beira. Depois fui para Castelo Branco, como chefe de Gabinete de Cesar Vila Franca, presidente da Câmara de então. Uma pessoa fantástica. Mais tarde fui durante uns tempos Chefe de Gabinete de Carlos Pinto, na Câmara da Covilhã e agora estou com António Rocha, em Belmonte.

CC – De onde vem a sua ligação a António Rocha?
JM
– Conhecíamo-nos da Covilhã. Convidou-me para lhe coordenar uma candidatura independente à Câmara de Belmonte. Não conseguimos a vitória mas tornámo-nos muito próximos. Passámos por muito juntos, numa fase menos boa das nossas vidas. Mas continuámos o trabalho e veio a ganhar a Câmara em 2013, onde fiquei depois como Chefe de Gabinete até hoje.
«Dei uma nova vida a Cabral e visibilidade a Belmonte»

CC – No que diz respeito à escrita disse uma vez numa entrevista que é um “escritor plural”. O que significa isso?
JM
– Digo que sou escritor “plural” porque não me sinto preso a um estilo literário, escrevo contos, crónicas novelas, teatro, romance. Foi por isso que me defini como “plural”, pela multiplicidade de géneros, mas também de estilo de escrita. Ainda este ano estive a recitar poesia em Paris com o pianista Bruno Bethoise, vamos agora gravar um vídeo…

CC – De fato, o crítico Miguel Real afirmou que, quem leia o “Diário dos Imperfeitos” e o “Índias” por exemplo, não diz que são do mesmo autor. Como é que isso acontece?
JM
– É fruto também da diversidade das minhas leituras e até da minha vida. Levou a que criasse muitas vozes dentro de mim. Por isso a diversidade da escrita. Há também uma diversidade de temas e creio que cada história merece uma linguagem diferente que a conte.

CC – Também escreve para a gaveta? De vez em quando vai ao baú e sai livro?… (risos).
JM
– Desde 2010 que publico com regularidade. De fato tenho muita coisa guardada que dava para editar um ou dois livros assim de repente…(risos). Mas é material que deixo repousar e a que volto mais tarde, com outro olhar e outro sentir. Os livros não são fruto de simples inspiração, mas sim um trabalho de artífice, em que se escreve e reescreve, em que se apura a linguagem, em que por vezes andamos dias à procura das palavras certas… mas todos os dias leio e escrevo. Ganhei uma disciplina, uma dinâmica de trabalho. Tenho um ambiente familiar favorável. É isso que explica a fecundidade da minha escrita.

CC – Sim, mas aventurar-se no romance histórico, com personagens do século XVI, época do apogeu português, com personagens tão emblemáticas como o Cabral, o Gama, Camões e agora o Magalhães, representa algum atrevimento e também responsabilidade?!
JM
– O mesmo Miguel Real disse um dia que, pela complexidade das obras, não sabia se eu muito confiante nas minhas capacidades ou se um louco que não sabia onde me metia… creio que é um pouco das duas coisas. Em “Vera Cruz” tenho uma versão original da intencional chegada de Cabral ao Brasil. Foi um livro que levou três anos a ser escrito – ainda nem trabalhava em Belmonte. É trabalhoso, pois é mais que contar uma história. Para além da investigação em si mesma, é preciso estudar o contexto sócio-político da época, os costumes, as roupas, a alimentação, a linguagem… para uma obra destas um autor tem de ler 20 ou 30 livros. Quando ia a meio, estive para desistir, depois é como aquela sensação da pessoa que está ao meio do rio e descobre tanto custa regressar como nadar para a outra margem… descansei três meses e retomei a escrita. Não mais parei até hoje. Como estou dentro da mesma que se voltar para trás vai ter de nadar o mesmo como se for para a outra margem…

CC – É o seu livro com mais sucesso?
JM
– O sucesso é relativo. Digamos que, é o livro mais vendido. É um long-seller… Aliás, aproveito para anunciar em primeira mão que, em Janeiro de 2020 vai sair uma outra edição, com uma nova capa…

CC – Valeu-lhe o reconhecimento também no Brasil onde tem sido convidado para palestras…
JM
– Sim, a minha ligação ao Brasil tem crescido muito. Tenho convites para voltar este ano para palestras na Bahia e Rio de Janeiro… o romance “Vera Cruz” vai ser editado no Brasil, assim como as versões juvenis da minha autoria. E tenho mais projectos em desenvolvimento… Acho que dei uma nova vida a Cabral e estou a contribuir par a visibilidade de Belmonte. Ainda em Dezembro dei uma palestra na Comunidade de Juristas da Língua Portuguesa, e o convite veio do Brasil…

CC – O “Índias” já foi decorrente da mesma investigação e da relação conflituosa entre Cabral e Vasco da Gama. O “Magalhães” vai na mesma senda e fecha a Trilogia dos Navegantes. Mas n’”O Livro do Império”, já se entra noutro campo de investigação? Verdade?
JM
– Sim. Tive de ler em profundidade “Os Lusíadas” – o que já ninguém faz. Anda toda a gente a repetir clichês de uns e de outros. Eu tentei encontrar coisas novas. Por isso apresento a obra como mais que um livro de poesia. “Os Lusíadas” são um livro político. Um poema que critica a nobreza corrupta mas consegue o apoio do rei D. Sebastião, critica a igreja (sobretudo os jesuítas) e – é importante sublinhar isto – o livro acaba por ser salvo pela Inquisição. Tive que estudar e encontrar respostas para estas contrariedades. É um livro sobre o verdadeiro Camões, não o aventureiro, o namoradeiro, mas o homem doente, envelhecido, decepcionado com a vida…. mas verdadeiramente genial!

CC – Porque é que os jovens não gostam d’Os Lusíadas?
JM
– Porque dificilmente lhes explicam a sua grandiosidade e importância. O programa de Português castiga de tal forma os alunos com a métrica e as figuras de estilo, que nunca mais querem pegar naquele livro… Eu tive o professor António Serra que, com as suas leituras fleumáticas me entusiasmou para esta obra universal… agradeço-lhe por isso!
Os prémios são transpirados”

CC- E agora este último romance …. Com o qual venceu o Prémio Ferreira de Castro 2019, significa um regresso ao passado?!
JM
– Um regresso a um estilo que já é o meu, nos “Diário”. Uma escrita mais ficcional e intimista. Concorri com pseudónimo. O prémio é atribuído ao valor da obra não ao nome do autor. Aliás, como em todos os prémios literários a que tenho concorrido.que recebi até agora…

CC – Quando será editado? E que sabor teve este prémio para si?
JM
– Será editado em 2020. Primeiro, uma edição da Câmara Municipal de Sintra, depois logo se vê… Este prémio teve um significado muito importante. Tenho uma grande admiração por este autor. Pela sua escrita e também pelo seu percurso de vida. Também veio de baixo, de origens humildes, foi quase escravo no Brasil, regressou a Portugal e teve uma vida de conquistas a pulso. Identifico-me muito com ele. Já o prémio Alçada Batista tinha sido para mim muito importante por ser um autor da Covilhã, que conheci pessoalmente. Os prémios são transpirados, resultado de muito esforço, e em que estão a concurso dezenas de obras de todos os países de língua portuguesa… não sei se as pessoas percebem esta dimensão. São por isso prémios gratificantes, que nos dão ânimo para continuar a escrever, que é uma actividade árdua e pouco reconhecida… e que não traz proventos financeiros.

CC – Em jeito de remate final, para além do Assessor político, do escritor com inegável reconhecimento nacional e internacional, onde está o cidadão João Morgado que aprendeu com o Monsenhor Cardijn a “ser fermento na massa, a interpelar e a interpelar-se”. Que inquietações?
JM
– Continuo a ser um cidadão inquieto. Mas tem sido uma inquietação contida, enquanto jornalista tive de manter uma atitude de distanciamento e independência perante os acontecimentos. Enquanto consultor político também estou sujeito a certas fronteiras de intervenção.

CC – Mas faz alguma perturbação com as crónicas de opinião que vai publicando nalguns jornais!!?
JM
– Sou um tanto insubmisso e provocador. Talvez por isso é que elas vão acabando…

CC – Como assim?
JM
– A censura ainda não acabou e os jornais precisam é de publicidade, não de provocadores sociais… mas, talvez isso explique o declínio da imprensa!

CC – Já foi autarca e como consultor tem estado sempre ligado às autarquias. Para uma intervenção politica mais direta, há sonhos? há aspirações? há ambições?
JM
– Retomando Cardijn e o método de revisão de vida, “ver, julgar e agir”, acho que tenho descuidado o “agir”. Mas há ainda muitos livros em branco para escrever, na literatura, na vida e na política…