23 de Dezembro. A noite anunciava-se escura e fria. O Engenheiro Fonseca regressa a casa. Técnico numa fábrica situada a uma centena de quilómetros da sua cidade, desloca-se comodamente no seu automóvel de grande cilindrada voando sobre o alcatrão. De repente, numa subida, o carro perde força e velocidade, duas luzes acendem-se e ficam a piscar. Surpreendido, dá uma forte pancada no volante, solta impropérios e encosta à berma da estrada. Enervado, veste o colete amarelo reflector e sai para colocar o triângulo de sinalização. Inspeciona o motor e tudo parece estar bem, poderá ser uma avaria nos circutos electricos. De imediato chama o pronto-socorro pelo telemóvel. Passam carros e mais carros, mas ninguém pára.
Sentado ao volante, liga o rádio. A música de Natal não o acalma. É que contava chegar a tempo de passar no Centro Comercial e comprar as prendas de natal para a família, especialmente para a netinha que tinha vindo passar uns dias de férias com os avós.
Com o passar do tempo, embalado pela música, de olhos fechados, começou a recordar os natais da sua infância, de menino pobre na sua aldeia. Era, então, tempo de natal , não pelas prendas, mas pelo frio e pelo matinal manto branco da geada que tudo cobria. Era o códão, como os mais velhos lhe chamavam. Para ele e os demais garotos, eram as brincadeiras em cima do caramelo junto ao marco da água, escorregando e partindo o gelo para atirarem os pedaços uns aos outros: trinca-espinhas aguenta-te com este. E, logo o amigo gritando-lhe: toma repolho, bem na cabeça, julgavas que te ficavas a rir! Mas, era à niote que a festa de natal era a sério. Lá pelos seus cinco anitos, quando já conseguia aguentar-se sem adormecer, recorda o fazer das filhóses e de ir pela primeira vez à Missa do Galo, pela mão do pai e logo para a Capela-Mor, bem junto do grande presépio cheio de figuras e musgo, que grande alegria sentiu! Na parte final, quando os homens lá do coro ao fundo da igreja começaram a cantar com voz forte, até ficou assustado. Quando repetiram lá percebeu: “Bendito e louvado seja o menino tão belo, que veio nascer na noite do caramelo. Caramelo? Daquele em que escorregavam? Ah! Era o menino Jesus que o fazia? E, com os olhitos bem abertos, não perdia de vista o menino já nas mãos do padre a ser dado a beijar. Agarrou a mão do pai e puxou-o para a fila e, quando chegou a sua vez, beijou-lhe decidido o pézinho. E, surpreendido, logo levou a mão aos lábios: não era que o menino era mesmo frio, tão frio como o caramelo! Só voltou a ficar tranquilo já em casa, à volta do lume, a comer uma filhó coberta de açucar amarelo e provando às escondidas o vinho doce e quente que o pai bebia.
De repente, acorda destes tão gratos pensamentos e saudosas recordações e, zangado por quase ter adormecido, desabafa: isto não é normal, deve ser do cansaço! Reconhecia para consigo próprio, andava muito cansado! O ano que estava a terminar, tinha sido difícil já que fora promovido na fábrica, mas a que custo! Mais e mais trabalho e tempo para a família e para ele próprio, nem vê-lo!
Saiu do carro de novo irritado. A noite estava cada vez mais fria. Levantou a gola do casaco, encostado ao carro e o pronto-socorro sem chegar… Talvez tivesse outros serviços. Pelo menos ele estava bem e já tinha avisado a família. Na noite escura, a Lua era um pequeno disco de luz branca, já um pouco descaída no horizonte. Quase já não passavam carros e as estrelas brilhavam lá no alto como há muito tempo ele não repava. Olhou atentamente as estrelas e, então, os seus olhos ficaram húmidos de íntima alegria: é que voltava a recordar-se de uma noite véspera de natal em que a mãe lhe falou sobre o brilho das estrelas. Lembrava-se nitidamente, foi no cimo do balcão de pedra: a mãe sentada e ele aninhado entre as suas pernas e com os rostos muito próximos. A mãe pegou-lhe na mãosita e dise-lhe: repara fiho, tantas estrelas e tão bonitas! Olha, cada pessoa tem uma estrela no céu que lhe pertence. Há muita estrelas, pois há muitas pessoas no mundo e todos temos uma estrela que nos ilumina, a gente é que não sabe qual é e, por isso, admiramo-las a todas. E quando crescemos, com as nossas boas acções, a nossa estrela brilha ainda mais. E, mais tarde, quando morrermos, a luz do nosso olhar volta para a nossa estrela que aumenta de brilho para voltar a acompanhar outro menino ou menina que acabe de nascer. Que Deus te tenha dado uma boa estrela para toda a vida, meu filho! Logo, ele, exclamou: mãe, mãe, eu quero aquela mais brilhante!
Passados mais de cinquenta anos, recordava com emoção as delicadas palavras de sua mãe. Agora, surpreendido, sentia-se de novo menino a recordar a ingénua e sábia lição, em que ele acreditou pois gostava de reparar no brilho do olhar da sua saudosa mãe.
Mais sereno, embora muito ansioso, voltou a entrar no carro. Paciência, já não iria a tempo de passar no Centro Comercial. Embora sem as prendas, sentia necessidade de partilhar com a família as fortes recordações destas horas. A vida passara depressa, o trabalho e o sucesso tinham-no ocupado tanto que não contara aos filhos estas lembranças. Eles cresceram e certamente já não o entendem. Contudo, agora , sentia pressa de pegar na mão da neta e os dois olharem calmamente as estrelas. Ela, entenderá a mensagem que recebeu de sua mãe e, certamente, a guardará para no futuro como mãe a continuar transmitir: todos temos uma estrela a que devemos ser fiéis ao caminharmos para ela.
Um forte clarão aproximou-se e interrompeu a paz dos seus pensamentos e propósitos. O pronto-socorro chegara !
Martins Marcelo
(NATAL de 2019)