Monte do Bispo – terra de oficiais de justiça

Conta-se que no interior raiano, nas refeições tradicionais de Natal ou da Páscoa, se costumavam sentar à mesa, em agradáveis convívios familiares, pessoas que, algum tempo antes, perseguiam ou eram perseguidos por outros dos comensais presentes.

Quadrazais, no concelho do Sabugal, é apontado como exemplo de aldeia raiana onde, nas décadas de 60 e 70 do século passado as opções de vida se repartiam entre guarda-fiscal ou contrabandista, para quem quisesse fugir à agricultura de subsistência ou à emigração.

Curiosamente, na aldeia do Monte do Bispo, onde nascemos e vivemos até ao 22 anos, tendo sido o primeiro a escolher a profissão de oficial de justiça, no início da “primavera marcelista”, para sobreviver e fugir à dureza do campo, vemos que o exemplo pegou moda e veio a transformar a aldeia num alfobre de funcionários judiciais.

Foi no dia 17 de Agosto de 1970, concluído o Curso Geral dos Liceus, que me apresentei no Tribunal Judicial da Covilhã, ao chefe da Secretaria Senhor Emílio Bento da Conceição, para iniciar o necessário período de estágio.

Nessa altura, os únicos requisitos exigidos eram os de que se soubesse escrever correctamente à máquina e colhido a prática numa secretaria judicial por período não inferior a 2 meses.

Tinha então apenas 17 anos e nada mais foi exigido que um requerimento a solicitar autorização para essa prática, que era gratuita e Benvinda num serviço então, como hoje, carente de recursos humanos.

Esperei pelos 18 anos e pela necessária concessão de emancipação, em Novembro, para logo poder concorrer a uma vaga de escriturário – por acaso, resultante da prisão preventiva, de um funcionário judicial.

No dia 9 de Janeiro seguinte, o “Diário do Governo” publicava o despacho de nomeação e no dia 11 tomava posse do lugar. Em Junho de 1973, quando convocado para cumprir o Serviço Militar Obrigatório, era já Ajudante de Escrivão, no mesmo Tribunal.

Para preencher a vaga, sugeri ao meu conterrâneo José Neves da Costa, que seguisse as pisadas, o que veio a fazer, acabando uma brilhante carreira de oficial de justiça na sua categoria de topo, como secretário judicial do Tribunal da Covilhã. Depois de a esposa, Lúcia, ter também ingressado como funcionária administrativa do mesmo tribunal.

Tendo casado, ainda durante a recruta, fixei residência em Paço de Arcos, para a mulher e o filho, entretanto nascido, nas vésperas do “golpe das Caldas”. No dia 5 de Abril de 1974, vinte dias antes da Revolução, era mobilizado em rendição individual para a Guiné, para onde zarpei apenas em 22 de Junho, regressando em 14 de Outubro de 1974.

Ainda voltei à Covilhã e ao seu tribunal judicial até 24 de Junho de 1975, data em que, finalmente, consegui a transferência para o tribunal de Oeiras, pois, mantinha a casa em Paço de Arcos, o que a crise de habitação já então recomendava.

Em Oeiras, onde pela primeira vez fui “airado” para os serviços do Ministério Público (vigorava então a regra dos dois “NN” como forma de recrutamento interno para esses serviços – o mais “novo” ou o mais “nabo” na secretaria) acabei a partilhar a investigação criminal com 3 agentes da Polícia Judiciária, de Angola e de Moçambique, entretanto “retornados”, com eles apreendendo e trocando experiências profissionais diferentes.

Havendo mais de 2 dezenas de estagiários no tribunal, querendo ingressar na função, acabei, com um senhor Juiz e uma senhora “Delegada do Procurador da República”, por formar uma turma a quem fomos ministrando, ao fim do dia, conhecimentos teóricos ao exercício da profissão. A “escola” acabou se alargar aos estagiários de Cascais, que se dirigiam a Oeiras para assistir às “aulas”. Entre os “alunos”, a minha esposa, Visitação e o irmão dela, que vivia connosco – Daniel Costa, hoje Administrador Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.

A necessidade de acolher os que “retornaram” das antigas colónias, conferindo-lhe prioridade no ingresso na função pública, tolheu os sonhos a muitos desses “alunos” ou retardou alguns deles até 1979 ou 1980, como foi o caso do Daniel e da irmã.

Mas não ficou por aí o “recrutamento” de novos oficiais de justiça, entre as gentes do Monte do Bispo ou seus familiares: relembro aqui a minha irmã Fernanda Gonçalves Pereira Meireles que, no final da década de 80 do século passado, estagiou na Covilhã e, para conseguir ser integrada mais rapidamente, acabou por concorrer para o Funchal, assumindo o compromisso de permanência por mais de 3 anos; acabou ficando 2 décadas, ali casando e criando as filhas; de lá trouxe para a terra outro oficial de justiça, o seu marido Jorge Meireles; ambos continuam ligados ao TAF de Castelo Branco.

Do Monte do Bispo saiu, igualmente para o Funchal, por lá continuando, a Carla Mocho da Costa; para Oeiras foi, em início de carreira, a Ana Seixo, acabando por regressar à Cova da Beira, onde continua, também como oficial de Justiça, o José Pires, outro filho do Monte do Bispo. São os que agora me vêem à memória.

Porém, nenhuma destas carreiras poderia hoje facilmente iniciar-se e prosseguir se já estivesse aprovado e em vigor o novo Estatuto dos Funcionários Judiciais cujo anteprojecto o Governo fez publicar no Boletim do Trabalho e emprego e que vem cercear, definitivamente, o acesso na carreira aos actuais funcionários que, há décadas, se mantêm na categoria do ingresso – escrivão auxiliar e técnico de justiça judicial, por falta de realização dos necessários cursos de acesso para promoção. É que o Governo, se o seu projecto for avante, pretende substituir a actual carreira por 2 categorias, com diferentes formas de recrutamento: a de técnico superior de justiça e a de técnico de justiça, reservando àquela o acesso aos lugares de chefia.

Para além da natural e frontal oposição dos actuais oficiais de justiça e do seu Sindicato, a proposta governamental concitou a oposição de ambas as magistraturas e respectivos Sindicato e Associação Sindical.

Curiosamente, o seu “proponente”, hoje Juiz Conselheiro, iniciou a sua carreira nos tribunais – tal como eu – como oficial de justiça, licenciando-se em direito como trabalhador-estudante e ingressando depois na Magistratura!

  1. Manuel José Gonçalves Pereira, Procurador da República, Jubilado.

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