A actual pandemia, pela gravidade e persistência, pode representar uma oportunidade de reflexão e de questionamento sobre as suas graves consequências para quem entenda que não vai voltar tudo à anterior normalidade ou, que a designada normalidade continha muitas irregularidades, imperfeições e contradições.
Assim, valorizarmos o que é essencial e tornar mais claras as prioridades que importam a uma sociedade mais digna e justa, porque equilibrada, em diálogo com a natureza e solidária, é responsabilidade de todos.
Para focalizar as consequências no território é necessário explicitar o conceito complexo de território, muito para além da vertente de geografia física, da noção limitada de terreno. Muito mais do que recursos naturais com as suas características de relevo, bacias hidrográficas, fauna e flora, com as inerentes capacidades e lógicas produtivas; o território é o resultado da persistente interacção dos povos que ao longo dos séculos o têm habitado e moldado, gerando comunidades enraizadas e com a sua história, os seus usos e costumes, os seus valores e símbolos, as suas tradições e instituições, num caldo de cultura que se expressa na identidade cultural de cada terra e ou região.
O território é, assim, o barco comum onde vivemos e de que dependemos, nele se revelando as marcas do tipo de prioridades, da acção continuada e os efeitos das medidas dos decisores políticos, económicos e culturais. É paisagem humanizada que está sempre em transformação, valorizando e favorecendo as condições de vida das pessoas ou, afectando-as negativamente. De facto, as pessoas são a componente mais importante do território, mas não são a única.
Na vertente da geografia física, a pandemia representa a diminuição da pressão humana sobre os recursos naturais, arrefecendo as causas das alterações climáticas, libertando a natureza no seu curso de renovação vital e de diversidade biológica onde tudo é enraizamento, evolução e interdependência. Representa uma lição de humildade para as pessoas alertando para o que é essencial, que se pode viver com menos, gerando muito menos desperdício e em convívio harmonioso com a natureza, em que o homem não pode persistir como agente predador, sem se por em causa e comprometer seriamente o seu futuro. Lição de humildade e de interdependência que se alarga à vertente social, pois que face a esta pandemia não faz qualquer sentido o individualismo, o egoísmo, a competição do salve-se quem puder de uns contra os outros. A única forma de proteger alguns é proteger todos. Não há ricos e pobres ou umas classes mais importantes e protegidas que outras. Não há que fugir do território, nem virarmo-nos contra a natureza, muito pelo contrário. Estamos todos no mesmo barco.
Uma outra lição que a pandemia revela e que tem consequências no território é o seu efeito sobre os mercados. Note-se que têm sido os mercados a organizar os territórios desequilibrando-os quanto ao povoamento. O mercado distingue, concentra, diferencia, valoriza por critérios de negócio e lucro os recursos e gera desigualdades e assimetrias. Para a lógica e dinâmica dos mercados tem que haver ricos e pobres, territórios atractivos que acumulam e concentram os recursos, mais pessoas e mais lucros, gerando territórios em abandono, de fraco ou nulo interesse para a rentabilidade e lógica lucrativa dos negócios e que pouco a pouco, insidiosa e silenciosamente, vai expulsando as pessoas de vastos territórios. Ora este vírus não distingue quem quer que seja, não respeita classes, é transversal a toda a sociedade, ataca mais nas zonas concentradas, desorganiza os mercados expondo quanto é injusta e iníqua a apropriação desigual dos rendimentos e quanto estava sendo comprometida a relação de diálogo, de respeito e de comunhão com a natureza. Ao contrário da lógica competitiva e consumista dos mercados, este vírus não ataca o território e a natureza, antes a respeita, devolvendo-nos aos espaços amplos e abertos, alertando para a questão essencial do equilíbrio no ordenamento do território e para a sua sustentabilidade, onde se joga o futuro como casa comum de todos.
A pandemia está a parar e a questionar a humanidade. Será que os decisores políticos, económicos e culturais estarão à altura do desafio, com estratégias de médio e longo prazo ou, apenas pensam e actuam a curto prazo, à espera que o pesadelo passe e tudo volte ao que designam por normalidade? A normalidade dos seus valores e interesses?
“A pandemia está a parar e a questionar a humanidade”. Quando tudo isto começou, referi isto a um grupo de amigos que me ouviam em Quinta do Conde – Sezimbra. O medo que as entidades públicas faziam chegar às populações, apenas se devia aos deficientes serviços de saúde. Esqueciam-se, por incompetência ou desconhecimento, dos efeitos que a pandemia iria provocar nos sectores produtivos e, consequentemente, na vida futura de todas as populações, nomeadamente, as mais desfavorecidas. Se fosse crente, diria: que Deus nos ajude.