Religiosidade popular

Manuel Lopes Marcelo
Professor Universitário
Penamacor

A língua, nas várias expressões da linguagem, é uma realidade viva e dinâmica intimamente ligada ao modo de produção, às profissões, ao sentir e ao viver das gentes. Mesmo antes da narrativa fixada na palavra escrita, a linguagem foi comunicação espontânea, meio criativo de representação da vida e modo essencial na formação da memória e no desenvolvimento de cada ser humano. De facto, a importância da função questionadora e mediadora da linguagem em cada ser em relação com os outrosconsigo próprio e com o mundo real e simbólico, foi essencial e decisiva na evolução humana. A linguagem, mesmo enquanto transmissão oral, influenciou a evolução social e cultural pela reafirmação e preservação dos valores e práticas mais valorizadas e estabelecidas de geração em geração. Partindo da observação da realidade, através da evolutiva capacidade de imaginação e de questionamento, a oralidade sedimentou o sentido da vida e do mundo.
Traduzindo a consagração e a partilha dos valores e dos saberes conservados como tradição, a literatura oral permitiu consolidar a construção e a afirmação de valores e de contrastes nas dimensões do tempo e do espaço. Assim se foi desenhando e evoluindo o mapeamento das memórias que constituiu a indelével herança para os filhos de uma mesma Comunidade. A socialização foi sendo construída através da adopção colectiva, inscrição em cada pessoa dos signos verbalizados, oralmente transmitidos e absorvidos, enlaçados no exemplo das atitudes, afectos e comportamentos. De facto, as narrativas constantes da literatura oral tradicional constituem um fluxo genuíno de informação e de formação em que se sedimentou a herança cultural do povo.
As histórias, ditos, cantigas, rezas, adivinhas, jogos e folguedos ligados aos usos e costumes transmitiam-se nos serões à lareira, cantavam-se enquanto se realizavam os trabalhos no campo e dançavam-se no terreiro e nas ruas das nossas aldeias. São testemunhos inéditos e memórias originais que chegaram até nós por transmissão oral. No âmbito da religiosidade popular, divulgamos hoje alguma rezas que expressam um sentimento telúrico. Religião e natureza interpenetram-se na liturgia iniciática da cultura tradicional popular em que o sentido prático e utilitário da vida, da luta pela sobrevivência, se associam à invocação ao agradecimento e respeito pelo sobrenatural.
Minhas mãos e o meu rosto lavo para dar glória à Virgem e uma orelhada ao Diabo.
Dizia-se que quando se comia sem se lavar, se comia com o Diabo.
Já lá vem o claro dia, Senhor confessar-me queria, não acho padre a quem me haja de acusar. Se me quiséreis ajustar, eu sou vossa filha e Vós sois meu Pai. Três aos pés, quatro na cabeceira. Nossa Senhora na dianteira. Nossa Senhora me disse que dormisse e repousasse e não tivesse medo de nenhuma coisa.

• Santa Bárbara se levantou, no seu cajadinho pegou, lá para o meio do caminho Nosso Senhor encontrou:

  • Onde vais Santa Bárbara?
  • Vou espalhar esta trovoada que por cima de nós está armada.
  • Se a espalhares, espalha-a bem lá para os campos de maninho, onde não haja mulheres com menino, nem ovelha com borreguinho.
    . Enquanto se faz o sinal da cruz na testa, na boca e no peito, dizia-se com ironia:
  • Pelo sinal da missa do galo comi toucinho, fez-me mal, se mais me dessem mais comia, catrapus, ámen Jesus.
    . Ó virgem Maria, este mês de Março tem trinta e um dias. Ó Virgem Maria, convosco assoldadar-me queria. A soldada que vos peço é paz e alegria, remédio para a minha vida e graça para vos servir. Salvação para a minha alma é a coisa que eu mais queria, por isso Vos hei-de rezar neste mês de Março, em cada dia, trinta e uma Ave-marias. Ó Virgem Sagrada, no final da minha vida me pagareis a minha soldada.
    . Padre me conforte. O Filho de Deus me dê uma boa morte. O Espírito Santo me guarde do maior e do menor, do baptizado e do por baptizar.
    Arreda de mim Satanás, nunca na minha vida entrarás. Lembra-me o Santo Nome de Jesus. Juntou-se o Sol com a Lua, arrebenta Diabo que esta alma não é tua.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *