Somos Livres

Manuel Magrinho
Prof. Universitário

Residente em Malpique

Somos livres! É o nome da canção que, muito provavelmente, melhor descreve a Revolução de Abril. Está muito esquecida e quando é recordada, só recordamos duas quadras: Uma gaivota voava, voava, Asas de vento, Coração de mar. Como ela, somos livres, Somos livres de voar. E, Uma papoila crescia, crescia, Grito vermelho, Num campo qualquer. Como ela somos livres, Somos livres de crescer. Estas quadras refletem o momento, a Revolução de Abril, a libertação e a alegria de viver.
Mas a canção de Ermelinda Duarte tem mais, muito mais! Começa com duas quadras onde recorda o passado do nosso povo, de onde viemos: Ontem apenas; Fomos a voz sufocada; Dum povo a dizer não quero; Fomos os bobos-do-rei; Mastigando desespero. E, Ontem apenas; Fomos o povo a chorar; Na sarjeta dos que, à força; Ultrajaram e venderam; Esta terra, hoje nossa. Relembra-nos as prisões do regime, a miséria, o desespero e a humilhação em que o povo português viveu durante décadas.
Ermelinda Duarte termina a canção com mais duas quadras onde descreve a esperança de um futuro melhor: Uma criança dizia, dizia “quando for grande; Não vou combater”. Como ela, somos livres, Somos livres de dizer. E, Somos um povo que cerra fileiras, Parte à conquista, Do pão e da paz. Somos livres, somos livres, Não voltaremos atrás. Fala-nos do desejo de Paz, na liberdade de nos expressarmos sem medos, na prosperidade e na vontade de caminharmos juntos para um futuro melhor.
Esta ultima parte não correu lá muito bem, falhamos por completo no “Somos um povo que cerra fileiras”, isolamo-nos, cada um preocupado com os seu próprios problemas, afastámo-nos da vida pública, olhamos com desconfiança quem se dedica a servir a comunidade através da atividade política. Em vez de cerrar fileiras, estamos mais isolados a cada dia que passa. A abstenção nos processos eleitorais não para de crescer, o descrédito e a falta de confiança nos nossos eleitos em nada contribui para o cerrar de fileiras. Como se não bastasse a pouca proporcionalidade do nosso sistema proporcional, o Método de Hondt, regressa agora a ideia de o querer substituir por um método ainda menos proporcional, a representação maioritária. Neste sistema, somente os dois maiores partidos sobrevivem, ou seja, ganha-se na secretaria o que não se consegue nas urnas.
Quanto ao “Não voltaremos atrás”, nada está garantido. Um exemplo esclarecedor foi a posição de Portugal na Assembleia das Nações Unidas, quando chamado a votar a resolução “Combater a glorificação do Nazismo, Neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada”, Portugal absteve-se, ou seja, Portugal não é contra a glorificação do Nazismo, Neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial e a xenofobia. E depois estranhamos que gente “com calor no sovaco direito” e que, para arejar, gosta de levantar o braço com um ângulo a 120 graus tenha apoio popular e esteja representada numa Assembleia Nacional nascida do 25 de abril de 1974.
A Revolução de Abril de 1974 foi também o momento onde o povo venceu o medo e saiu à rua em apoio aos militares que tiveram a coragem de fazer a revolução que muitos desejavam. O medo foi uma constante nas décadas de ditadura, o medo de dizer algo que fosse parar aos ouvidos da polícia politica. Com este medo cresceu a desconfiança e a prudência quanto ao que dizer perante o conjugue, o filho ou o vizinho. Ou seja, no tempo em que até as paredes tinham ouvidos, o povo português aprendeu a viver com medo e desconfiança em relação a tudo e a todos.
O medo tem estado a regressar aos poucos, seja o medo de perder o emprego, o medo de não aceite num determinado grupo social ou o medo de represálias de gente em posições de poder. O verso de Ermelinda Duarte “Somos livres de dizer”, atualizado para os dias de hoje, seria: Somos livres de dizer, mas com cuidadinho!
O filósofo inglês Thomas Hobbes ensinou-nos que um dos pilares das sociedades humanas é o medo. O povo português tem uma longa experiência com este sentimento, primeiro com a Santa Inquisição depois com a ditadura fascista do Estado Novo, o medo está entranhado no nosso ser, no nosso ADN. Uma sociedade fundada sobre o medo é certamente uma sociedade triste.
Para cumprir abril necessitamos de ganhar coragem, vencer o medo, aprender a confiar uns nos outros, cerrar fileiras e partir à conquista do pão e da paz.

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