Há terras em Portugal que parecem viver à margem do tempo, não por falta de história, mas por excesso de silêncio. Caria, freguesia do concelho de Belmonte, é uma dessas terras. E não se trata de um silêncio natural, daqueles que a geografia impõe, mas de um silêncio político, estratégico e institucional, que tem mantido esta vila refém da inércia e do esquecimento. Caria é, hoje, um exemplo claro de como o interior profundo pode ser esquecido — não por falta de potencial, mas por ausência de vontade.
Esta vila beirã, elevada à categoria de vila em 1924 e antiga sede de concelho até à reforma administrativa de 1836, não é apenas mais uma localidade no mapa da Beira Interior. É um território com identidade própria, memória coletiva profundamente enraizada, um património histórico que atravessa séculos e uma comunidade que, apesar do abandono, continua a resistir.
Mas há muito que Caria não é tratada como vila. Caria é tratada como um satélite esquecido de Belmonte, e essa é talvez a maior ferida por sarar. A relação entre a sede de concelho e a vila parece marcada por um divórcio tácito — institucional, afetivo e político — que a governação local nunca quis resolver. A concentração de investimentos, eventos e dinâmicas exclusivamente em Belmonte tem empurrado Caria para um plano irrelevante, quando devia ser, justamente, um dos principais pilares da coesão territorial.
O património da vila é vasto e valioso. As casas senhoriais — como o Solar dos Condes de Caria — são testemunhos de uma história nobre e burguesa que merece ser contada. As ruínas castrejas do Monte de Caria evocam a ocupação ancestral do território. A Casa Etnográfica é, por si só, um documento vivo da ruralidade da região. Mas nada disto tem sido transformado em instrumento de valorização económica, cultural ou turística. Falta visão, falta estratégia e, sobretudo, falta vontade.
O encerramento da Carveste, em 2013, símbolo da industrialização têxtil no interior, foi o golpe final numa economia já fragilizada. Aquilo que podia ter sido aproveitado como oportunidade para reestruturar o tecido produtivo local e atrair novos investimentos — nas áreas da agricultura de valor acrescentado, turismo rural, ou economia verde — foi ignorado. A vila ficou entregue a si própria, sobrevivendo da memória, da agricultura de subsistência e da teimosia dos que recusam abandonar as suas raízes.
Hoje, Caria está envelhecida, despovoada e esquecida. E, no entanto, tem tudo para ser um caso de sucesso no interior: localização estratégica entre Belmonte e Covilhã, potencial de turismo patrimonial e natural, comunidade com profundo sentido de pertença, e uma rede de infraestruturas básicas já existente. O que falta é reconhecimento — não apenas simbólico, mas orçamental, político e programático.
O problema é estrutural e começa no topo: o Município de Belmonte falha, há décadas, em integrar Caria numa visão de desenvolvimento equilibrado e justo. Os autarcas passam, as promessas renovam-se, mas Caria continua a ver verbas canalizadas para outros lados, iniciativas promovidas em torno de Belmonte e uma retórica que nunca passa do papel. E quando se ousa pedir mais por Caria, a resposta é sempre a mesma: não há verba, não há prioridade, não há retorno.
Mas o que é mais grave é o silêncio cúmplice das estruturas distritais e regionais do Estado, que não exigem ao poder local um planeamento equitativo. Caria não é só uma freguesia. Caria é um direito por cumprir. É o espelho de um país que continua a olhar para o interior com paternalismo — como se bastasse instalar um parque infantil ou uma placa de inauguração para resolver décadas de abandono.
É tempo de inverter esta lógica. É tempo de Caria deixar de ser território adiado. É tempo de exigir um plano estratégico de desenvolvimento específico, com investimento estruturado nas áreas do turismo, da reabilitação urbana, da mobilidade e da fixação de jovens e empresas. É tempo de Belmonte perceber que crescer sozinho é empobrecer em conjunto. E é tempo de Caria fazer ouvir a sua voz — nos órgãos autárquicos, nas associações, nos jornais, nas urnas.
Porque enquanto Caria continuar a ser esquecida, o concelho de Belmonte jamais será verdadeiramente coeso. E o interior, esse interior tantas vezes usado como bandeira de discursos, continuará a ser apenas cenário de promessas vãs.